Abusos ao consumidor em contrato de locação de veículo
LOCAÇAO DE VEÍCULOS – CONSUMIDOR
- Ao alugar um veículo, seja numa viagem a turismo, seja para atender uma necessidade na sua própria cidade, ou mesmo para explorar uma atividade econômica como a de motorista por aplicativo, há diversos pontos que o CONSUMIDOR deve observar, primeiro na contratação, segundo na devolução, terceiro nos eventos de cobranças de multas de trânsito ou em situações de acidentes.
- Para trazer um pouco mais de clareza e tranquilidade, a Ozol Advocacia preparou alguns esclarecimentos, que traremos em diferentes postagens nos próximos dias.
- A ideia surgiu de um caso de um cliente, que de uma locação de pouco mais de R$ 100,00, com contratação de seguro, se viu cobrado em mais de R$ 6mil após ter sido a VÍTIMA de um acidente com perda total. Vejamos um resumo dos fatos, para melhor contextualização.
- Dos fatos
- O consumidor locou um veículo com uma locadora e no dia seguinte foi vítima em um acidente onde o outro condutor invadiu a preferencial. Como o carro sofreu perda total em razão do acionamento dos airbags, a seguradora do outro condutor cobrirá todos os prejuízos do veículo.
- Para uma maior garantia do consumidor, ele mesmo tinha contratado seguro na locação, como pode ser observado no contrato anexo, com pagamento de R$ 3,30 e cuja apólice a locadora não entregou, razão porque desde já se requer a imposição de tal ônus. Todavia, no texto abaixo se observa a previsão contratual, sem ressalvas:
- Todavia, além de todo trauma do acidente dos quais seus filhos participaram e do qual saiu traumatizado, o cliente teve desagradável surpresa ao comunicar a fornecedora do serviço sobre o ocorrido, pois se viu cobrado em valores abusivos:
- Combustível R$ 311,20
JUSTIFICATIVA: o tanque não foi reabastecido para retorno do veículo;
- Indenização R$ 5.000,00
JUSTIFICATIVA: cláusula contratual “dano PT/Furto/Roubo”, como custos operacionais para perdas com veículo parado, depreciação dele e transtornos
- Reboque R$ 123,00
JUSTIFICATIVA: o veículo teve de ser rebocado;
- Multa contratual R$ 108,00
JUSTIFICATIVA: o veículo foi entregue antes da data contratual;
- Taxa de aluguel R$ 674,07
JUSTIFICATIVA: cláusula contratual que proporciona benefícios ou vantagens;
- Todas estas cobranças são abusivas, como detalhamos na sequencia.
- Resolução do contrato e seus efeitos
- Como bem definem as regras civis, para a existência de um contrato válido é necessária a conjunção de três elementos, sendo o mais evidente deles o “objeto” com determinadas característica. Isto posto, necessariamente, um contrato de aluguel deixa de existir se deixa de existir o seu objeto. E havendo o perecimento do bem, sem culpa do devedor, o contrato e as obrigações se resolvem sem novos efeitos ou eficácia futura.
- De tão lógicas tais regras, elas são milenares com origens que tocam o Código de Hamurabi com a máxima cristalizada em latim: “res perit domino”. E não se cogite afastar a lógica acima apenas porque a origem é antiga, pois podemos encontrar as mesmas noções nos artigos do atual Código Civil:
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei.
[…]
Art. 238. Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda.
- Estabelecidas as premissas de que o acidente com o carro alugado, com perda total e sem culpa do locatário, gera a rescisão imediata do contrato e com a perda ao credor/proprietário, avaliemos os fatos da causa.
- a) Combustível R$ 311,20
- O objeto da locação claramente foi um veículo íntegro e de tanque cheio. Se o fato foi de perda total sem culpa do devedor, a perda inclui o veículo e o combustível, fazendo abusiva a cobrança dos valores de um ou de outro frente ao consumidor-locatário. Sem veículo a restituir, com seguro contra acidente, aproxima-se na má-fé a exigência de um “tanque cheio”.
- b) Indenização R$ 5.000,00 – por custos operacionais
- A locadora colocou em seu contrato de adesão que o consumidor deverá lhe pagar “custos operacionais” em caso de se envolver em acidente, de no mínimo R$ 5mil, como uma regra genérica de “lucros cessantes” ou “danos emergentes” que não precisaria de comprovação efetiva:
- Veja-se a primeira impropriedade da cobrança feita, pois o contrato indicou o valor de R$ 5.000,00 como um limite máximo de custos em caso de Perda Total e não como um limite mínimo, como se fosse de custos pré-garantidos e sem necessidade de comprovação. Inviável uma cobrança de indenização sem prova de efetivos danos da locadora a serem indenizados (art. 944, CC).
- Mas ainda que a cobrança fosse em valor menor, ela é abusiva se o consumidor não teve nenhuma culpa no acidente, pois apenas há ato ilícito no dolo ou culpa (art. 186 e 927, CC), o que não é o caso dos autos, vez que outro foi o responsável pelo acidente:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
[…]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
[…]
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
- Obtido em pesquisas, na página 21 das condições gerais (que não foram apresentadas ao consumidor na contratação, menos ainda assinada por ele, mas que vincula a fornecedora), há uma explanação sobre tal cláusula:
- c) Custos Operacionais: referem-se aos ônus suportados pela Locadora em virtude de eventos decorrentes de indisponibilidade do carro, serviços relacionados, perda de valor de mercado do carro e outros custos incorridos na operação da Locadora. O valor mínimo da Indenização por Custos Operacionais será limitado ao menor valor dos prejuízos da Locadora e o valor máximo será limitado ao valor descrito no Contrato. A adesão à Proteção do Carro e/ou Seguro para Terceiros NÃO isentará o Cliente do pagamento da Indenização por Custos Operacionais. Ressalva-se a essa cláusula o previsto na cláusula 7.3.3 destas Condições Gerais.
- Com clareza, se tal cláusula de fato pretende garantir uma indenização sem precisar de provas do efetivo dano e sem culpa do consumidor, é nula.
- E também merece ser anulada porque nas “condições gerais”, tal “direito da locadora” é antecedido pela imposição de outras indenizações pelo consumidor referentes a “danos ao carro” e “prejuízo”. E é novamente nula porque o mesmo direito ou cláusula não ficou disponível ao consumidor em caso de prejuízos advindos de defeitos ou falta de manutenção nos veículos disponibilizados pela Ré, com evidente desproporção. E mais abusiva ainda, num contrato garantido por seguro.
- Renove-se, a abusividade fica patente ao avaliarmos as mais comezinhas regras da responsabilidade civil, uma vez que é necessário se coligarem: ato ilícito (não provado), dano (dispensado pela previsão prévia de custos operacionais) e nexo de causalidade (não provado).
- Nosso Tribunal já teve oportunidade de repreender a locadora por esta cobrança:
APELAÇÃO CÍVEL. […] CONTRATO DE LOCAÇÃO DE VEÍCULO. AUTORA QUE SE ENVOLVEU EM ACIDENTE DE TRÂNSITO COM O AUTOMÓVEL LOCADO. COBRANÇA PELA RÉ DE “CUSTAS OPERACIONAIS” RELACIONADAS AOS DANOS DO CARRO. CONTRATAÇÃO OPCIONAL DE SEGURO EXCLUSIVAMENTE PARA O CASO DE SINISTRO. COBRANÇA E ANOTAÇÃO NO ROL DE INADIMPLENTES INDEVIDAS. […] (TJSC, Apelação Cível n. 2012.064892-4, de Blumenau, rel. João Batista Góes Ulysséa, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 19-09-2013).
- E trecho do voto, acolhido à unanimidade, com grifos nossos:
(a) Da inexistência do débito
Alegou a Apelante, em síntese, que o débito existe e se refere às custas operacionais da empresa, as quais foram aceitas pela Autora, afirmando ter agido no exercício regular de direito, ao inscrever o nome da Demandante, no rol de inadimplentes.
Contudo, razão não assiste à Insurgente.
[…] não há como se admitir a cobrança realizada pela Ré, visando a indenização por custos operacionais, até porque, aplicando-se as disposições do CDC, ocorre a flexibilização do princípio do pacta sunt servanda, ou seja, da força obrigatória dos contratos, direcionando as normas consumeristas para assegurar o equilíbrio entre as partes, rechaçando eventuais cláusulas contratuais abusivas que excessivamente venham onerar o consumidor.
Nessa linha, tratando-se de um contrato de adesão, este deve ser analisado e interpretado sempre em benefício do consumidor (art. 47 da Lei n. 8.078/90). Assim, embora haja a previsão no pacto acerca da indenização por custos operacionais (fl. 14 – parte superior direita), essa “cláusula” é imprecisa e não informa expressamente a obrigação do locatário em suportar tais custos, ainda mais quando tenha sido contratado separadamente o seguro do veículo.
E, diferentemente das cláusulas relativas ao seguro, que também acarretavam custos extras para a Apelada, não há assinatura desta ou sequer campo destinado para tanto ao lado dessas controvertidas informações.
Por outro lado, as cláusulas gerais do contrato, apresentadas com a peça contestatória (fls. 40/41), também não fornecem informações precisas acerca desse ônus imposto ao consumidor, além de se tratar de documento unilateral, não assinado pela contratante, devendo, portanto, ser interpretado restritivamente.
- Por oportuno, destaque-se que há contrato de seguro relacionado a este veículo e a esta locação. Como houve perda total, é regra das locações que nenhuma franquia seja cobrada. Assim, não há dano que a locadora possa alegar, se a seguradora foi contratada para lhe fazer a cobertura. E em casos onde havia seguro, a justiça também já definiu o abuso na cobrança de custos operacionais:
Dessa forma, tendo o autor contratado o seguro do automóvel no ato da contratação, prejuízos advindos do risco da atividade da requerida, que não cobertos pela referida apólice, não podem ser transferidos ao consumidor. (autos 5000473-11.2020.8.08.0030, em reportagem acessada em 18/09/22 às 18h em http://www.tjes.jus.br/locadora-deve-cessar-cobranca-a-cliente-que-sofreu-acidente-com-perda-total-do-veiculo/)
- Em referida sentença do JEC do TJES, o juiz ainda consignou que tal cobrança não pode ser repassada ao consumidor, pois os custos operacionais são de responsabilidade do prestador do serviço e se referem ao risco da atividade desenvolvida, declarando a inexigibilidade do débito, com fixação de indenização por danos morais em R$ 10 mil.
- c) Reboque R$ 123,00
- O seguro cobre o reboque! É de retumbante má-fé a cobrança de um reboque de um veículo segurado!!
- d) Multa contratual R$ 108,00
- Como definido acima, a perda do objeto do contrato redundou na rescisão contratual sem culpa de nenhuma das partes. Então não há justificativa para cobrança de nenhuma multa pela rescisão antecipada involuntária.
- e) Taxa de aluguel R$ 674,07
- Aqui temos uma abusividade extrema. Abusividade maior do que uma desatenção à falta de culpa para o evento rescisão. Uma abusividade que é prática criminosa contra o consumidor, alarmantemente habitual das empresas de locação e que tem sido sempre repudiada pelo judiciário.
- O consumidor que deseja alugar um veículo faz o orçamento e verifica o preço da diária, do seguro e mais algum serviço adicional que pretender. Mas depois de definir sobre a vantagem ou não da contratação, vê-se forçado ao pagamento de uma taxa adicional de 12%, com o nome “taxa de aluguel”. Absurdo, pois o serviço tem o “preço de aluguel”, não se justificando uma sobretaxa de mesma finalidade.
- E sempre ficando mais absurdo, tal taxa foi aplicada às multas e à indenização cobrada do consumidor em razão do acidente.
- Veja-se que nas “condições gerais” anexadas, a rubrica não é melhor explicada (fl. 14):
- c) Taxa de Aluguel: Percentual previsto no Tarifário aplicado sobre o valor total do Contrato, inclusive sobre a Indenização por Custos Operacionais, ou seja, essa taxa incide sobre o valor total de cada fatura emitida.
- E diante da patente abusividade, o Procon-MG já condenou tal prática em 2018[1]:
O Procon-MG, órgão integrante do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), multou a Localiza Rent a Car S/A em R$ 1.161.481,00 por prática abusiva, devido à cobrança de taxa extra de 12% sobre o valor da locação de veículos. A condenação em processo administrativo ocorreu depois de apuração em investigação preliminar que comprovou a cobrança não optativa da taxa e após tentativa, sem êxito, de ajustamento de conduta da empresa.
De acordo com a decisão do Procon-MG, a prática é abusiva, pois viola o direito à informação adequada e clara sobre o preço do produto ofertado e impõe onerosidade excessiva ao consumidor.
Na avaliação do promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte Paulo de Tarso Morais Filho, a incidência da taxa extra, sem que haja esclarecimento ao que corresponde, é uma forma de induzir o consumidor ao erro, pois a empresa anuncia uma tarifa que, ao final, é acrescida de 12% sobre o valor global do contrato. “Essa taxa que, na verdade, faz parte dos custos operacionais do próprio serviço de locação deveria ser incluída na cotação de preços apresentados inicialmente pela empresa”, afirmou o promotor.
Na decisão, o promotor esclarece que “o valor final de um produto adquirido ou serviço contratado deve englobar toda a cadeia produtiva que inclui os custos, despesas e lucro projetado, sendo que aos consumidores deverá somente ser exposto o valor final alcançado pela equação resolvida pelo fornecedor de acordo com seus objetivos e, no caso da concretização da venda, o valor dos impostos pagos”.
A Localiza tem prazo de 10 dias, a contar da data de recebimento da notificação, para apresentar recurso à Junta Recursal do Procon-MG.
- Com decisões em outros estados no mesmo sentido:
AÇÃO INDENIZATÓRIA. CONTRATO DE LOCAÇÃO DE VEÍCULO. […] COBRANÇA INDEVIDA DE TAXA DE ALUGUEL. SENTENÇA QUE RECONHECEU A ABUSIVIDADE DA COBRANÇA, ORDENANDO A RESTITUIÇÃO DO VALOR COBRADO, INDEFERINDO O PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. MERO ABORRECIMENTO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DE PERSONALIDADE. MANUTENÇÃO INTEGRAL DO JULGADO. RECURSOS CONHECIDOS E NÃO PROVIDOS. […] No mérito, cuida-se de demanda proposta pela parte Autora em face da LOCALIZA RENT A CAR a fim de que a empresa seja condenada ao pagamento de indenização a título de danos morais e materiais pela cobrança de taxa de aluguel no valor de 12% do contrato sem a sua anuência ou informação prévia.
[…] verifico que em dezembro de 2018 o Procon-MG, após medida intentada pelo Ministério Público de Minas Gerais, multou a ré Localiza Rent a Car S/A em R$ 1.161.481,00 por prática abusiva, devido à cobrança de taxa extra de 12% sobre o valor da locação de veículos. Portanto, reitera a prática ilícita no caso dos autos. Fato é que, a referida taxa serve para cobrir despesas de responsabilidade da empresa ré, e, portanto, deveria estar prevista na composição da tarifa das diárias/mensalidades cobradas dos consumidores, como custo da atividade comercial, e não, a ser cobrada como taxa apartada No entanto, a fim de publicizar preços menores e mais atrativos, cobra a taxa apartada, apresentando ao consumidor apenas ao tempo da cobrança. Sendo assim, entendo, como a juíza de piso, que houve abusividade da prática, notadamente ante a ausência de provas de que a parte autora foi esclarecida sobre a cobrança da taxa. Nesse aspecto o CDC adverte, como princípio da Política Nacional das relações de consumo, além de direito básico do consumidor, o dever de informação clara, exata e adequada, não apenas dados embutidos em termos contratuais e condições gerais (art. 4ª, inc. IV e art. 6º, inc. III, do CDC). […] (TJBA, 3Turna Rec., RecInom 0007498-22.2020.8.05.0103, Relatora Eliene Simone Silva Oliveira, 01/07/21)
- Na mesma linha dos custos operacionais, tal rubrica de “taxa de aluguel” cobrada merece ser expurgada pelo juízo, devolvendo-se os valores pagos, com dobra legal. E com ofício ao Ministério Público para apuração de crime contra o consumidor.
- Da relação de consumo
- Primeiramente cabe ressaltar que a atividade de locação de veículo evidentemente se enquadra em prestação de serviço e, portanto, é agasalhada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). De um lado, temos o fornecedor e, do outro lado, o consumidor lesado. A atividade exercida pela empresa de locação é fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração (art. 3º, do CDC), caracterizando-se como prestação de serviço típica, usada pelo cliente como destinatária final da locação.
- Neste norte, a presente demanda é ajuizada com base no CDC, em razão do que deve ser observada a inversão do ônus da prova e a proteção contra práticas abusivas, sobretudo diante da afirmação do consumidor de que a dívida não existe, está sendo cobrada de maneira abusa e com encargos também abusivos.
- a) Aquisição para mais de uma finalidade
- A relação do entre as locadora e seu cliente é de consumo porque este alugou um carro para suprir sobretudo a falta de um veículo em sua vida pessoal. Se ele pratica a atividade eventual de motorista de aplicativo, isso não afasta o fato de ser um destinatário final do carro: o autônomo tem naturalmente uma despersonificação e confusão patrimonial com sua atividade.
- Com sabedoria, a legislação impõe que o consumidor como destinatário final, mas não exige que se abstenha de ter atividade econômica, sendo certo que uma caneta de um advogado, o celular de um empresário, ou a roupa de uma modelo, são sim itens de consumo, próprios daqueles que os compraram como destinatários finais, ainda que por vezes toquem suas atividades econômicas.
- A diferenciação pode ser sensível, mas não deve ser ignorada: uma situação é uma indústria adquirir insumos, ou uma transportadora locar veículos, exclusivamente para seu empreendimento. Outra é um cidadão sem carro alugar um carro para suas atividades pessoais, ainda que com uso eventual em atividade de transporte pago.
- No caso dos autos, às 22h daquela quarta-feira o cidadão estava usando o carro que havia locado para buscar a própria filha na igreja e a levar para casa. A finalidade de uso do bem foi de destinatário final, devendo ser aplicada a regra e a proteção própria. A prova se junta com anexos que demonstram que o cliente teve movimentação junto à Uber apenas até às 16h daquele dia do acidente.
- b) Teoria finalista mitigada
- Ademais, ainda que o cliente usasse o veículo alugado exclusivamente para atividade profissional (o que não é o caso!), ainda assim a proteção da legislação consumerista não lhe deveria ser negada, em virtude da pacificada teoria finalista mitigada, que visa à proteção daqueles visivelmente vulneráveis na relação — que é o caso, de um contrato de adesão inegociável.
- Em outras palavras, a teoria tem a função de diferenciar a compra de trigo por uma “Nestlé” e por uma “senhora do bairro” que faz coxinhas para vender. Ou na linha do tema dos autos, a diferença entre uma grande empresa de transportes e um cidadão que faz bico de Uber. A posição de cada um destes perante o fornecedor é cristalinamente diversa, conforme já expressou nosso Tribunal:
DIREITO DO CONSUMIDOR – MICROEMPRESÁRIO INDIVIDUAL – PRODUTO ADQUIRIDO COMO INSTRUMENTO DE TRABALHO – CONCEITO DE CONSUMIDOR – TEORIA FINALISTA MITIGADA – PRECEDENTES DO STJ – VULNERABILIDADE DEMONSTRADA – APLICABILIDADE DO REGIME CONSUMERISTA. A jurisprudência assente do Superior Tribunal de Justiça adotou a respeito da concepção de consumidor a teoria finalista mitigada, a qual estende a aplicação das normas protetivas constantes no Código de Defesa do Consumidor a determinados consumidores profissionais de produtos ou serviços, desde que comprovada vulnerabilidade em relação ao fornecedor. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2015.072971-1, de São José, rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 29-02-2016).
- Tema que o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de esmiuçar:
Civil. Relação de consumo. Destinatário final. – A expressão destinatário final, de que trata o art. 2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor abrange quem adquire mercadorias para fins não econômicos, e também aqueles que, destinando-os a fins econômicos, enfrentam o mercado de consumo em condições de vulnerabilidade; espécie em que caminhoneiro reclama a proteção do Código de Defesa do Consumidor porque o veículo adquirido, utilizado para prestar serviços que lhe possibilitariam sua mantença e a da família, apresentou defeitos de fabricação. Recurso especial não conhecido (REsp 716.877/SP, 3ª Turma/STJ, Rel. Min. Ari Pargendler, j. em 22.03.2007, DJe de 23.04.2007)
- E novamente trazendo ao tema dos autos, o STJ já definiu que “A aquisição de veículo para utilização como táxi, por si só, não afasta a possibilidade de aplicação das normas protetivas do CDC”:
DIREITO CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO ZERO-QUILÔMETRO PARA UTILIZAÇÃO PROFISSIONAL COMO TÁXI. […]
- A aquisição de veículo para utilização como táxi, por si só, não afasta a possibilidade de aplicação das normas protetivas do CDC.
- A constatação de defeito em veículo zero-quilômetro revela hipótese de vício do produto e impõe a responsabilização solidária da concessionária (fornecedor) e do fabricante, conforme preceitua o art. 18, caput, do CDC.
- Indenização por dano moral devida, com redução do valor.
- Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 611.872/RJ, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 02/10/2012, DJe 23/10/2012)
- E no mesmo sentido REsp n. 575.469/RJ, Relator Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 18/11/2004, DJ 6/12/2004, p. 325 e a seguinte decisão monocrática: REsp n. 1.159.052/MG, Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJ 27/3/2012.
- c) Ônus da prova conforme a aptidão de produção
- Por fim, ainda que ficasse afastada a relação de consumo, ainda que ficasse afastada a proteção ao hipossuficiente, a inversão de ônus de provas merece inversão também com base na legislação processual (art. 373, §1°, CPC).
CONCLUSÃO
- A finalidade maior deste artigo foi a de trazer informações detalhadas e fundamentadas ao cliente sobre seus direitos em algunas situações que pode enfrentar de embate com locadoras de veículos. Ainda que seja possível ponderar divergência às ideias defendidas acima, o mais importante é a mensagem ao locatário do veículo que não deve se conformar com nada que pareça abusivo. No caso de qualquer dúvida, deve investigar seus direitos, procurar um advogado e confiar que a lei lhe dá a proteção contra um contrato que não teve oportunidade ou liberdade de negociar.
[1] https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/procon-mg-multa-localiza-rent-a-car-em-r-1-1-milhao-por-pratica-abusiva.htm